Por Samuel Strazzer Em RMVale Atualizada em 22 DEZ 2020 - 19H56

Entrevista: rapper Neto, do grupo Síntese, fala sobre a convivência, tratamento e inclusão da pessoa com esquizofrenia

“Quando tem alguém assim na sua família, todo mundo vai buscar a cura pra ele e todo mundo se cura nesse processo”, diz o músico


Após o rapper Leonardo Irian, 27 anos, ficar desaparecido por cinco dias e ser encontrado na terça-feira (15), o amigo Gestério Neto, também membro do grupo joseense Síntese, levantou a hashtag #PrecisamosFalarSobreEsquizofrenia nas redes sociais. Neto publicou um vídeo no Instagram que já tem mais de 120 mil visualizações.

Em entrevista ao Portal Meon, Neto contou, com muito respeito e carinho, como foi a descoberta da doença do Leo, o que aprendeu sobre a esquizofrenia e como é a convivência com o amigo.

Leozão é nosso mestre, o maluco que deu essa luz pra nós. Todo o aprendizado que nóis tem é baseado nessa vivência toda que a gente teve, falo por mim e pela Matrero. [...] Eu sou o Neto que representa o Síntese e todo show é barulho para Leonardo Irian”, diz Neto.

O Meon também falou com a psicóloga Thaís Ribeiro Santos que esclareceu algumas questões sobre a doença.

Confira:

Descoberta da doença

O rapper Gestério Neto contou que ele e o amigo Leonardo Irian criaram o Síntese com o objetivo de levar uma mensagem à humanidade. A intenção inicial não era fazer shows como os outros grupos de rap, mas gravar um disco e depois ir para a ordem dos franciscanos para viver a mensagem. Contudo, algumas pessoas começaram a identificar alguns sintomas de esquizofrenia em Leo e, logo após lançarem o primeiro álbum, o músico teve um surto. 

“O disco saiu em julho de 2012, aí foi seis meses daquele jeitão e o Leo só piorando. Até que, na virada do ano para 2013, veio a primeira internação. [...] Vieram pra mim e falaram ‘pesquisa sobre esquizofrenia, sou assistente social, eu cuido disso’. Eu fui lá ver sobre e descrevia certinho tudo que a gente estava passando, tudo que a gente estava vivendo”, explicou Neto.

O músico relata que começou a identificar sintomas de distúrbio de personalidade, oscilação de humor, confusão metal, delírio e megalomania persecutória, que é quando o indivíduo desenvolve a sensação constante de que escondem ou planejam algo contra ele.

“[...] Tudo que acontece vai prejudicando muito a memória da pessoa, ela não sabe o que aconteceu na vida dela, lembra de algumas coisas, depois lembra de outras, e não lembra de umas. É uma coisa muito complexa”, detalhou o rapper.


Aceitação

Neto disse ainda que no início houve um processo de aceitação da doença, pois, até então, ele estava acostumado a enxergar o comportamento do amigo como sensibilidade e arte.

“Aí eu pensei ‘entendi mano, nóis não é os escolhido não, isso aí é uma sensibilidade de uns moleques da hora que pensa na vida, talentosos, altruístas pra caramba, honesto com o nosso Rap, mas isso aí é um transtorno’ ”, conta.

Além da percepção dos amigos em relação à doença, Neto conta que também é difícil para a pessoa com esquizofrenia aceitar e compreender a sua condição pessoal.

“É um tabu até pro Leo falar de esquizofrenia. Todo esse diálogo é importante ser aberto, por causa que é difícil falar com a própria pessoa que tem esquizofrenia, ela não aceita, ela acha que é normal e atribui a outras coisas, todas as coisas que ela faz diferente, aí é que mora um sofrimento maior”, conta.


Convivência, família e amigos

Neto conta que, quando uma pessoa é diagnosticada com esquizofrenia, todos ao redor buscam e participam do tratamento para que ela fique bem.

“Quando tem alguém assim na sua família, todo mundo vai buscar a cura pra ele e todo mundo se cura nesse processo. Foi todo mundo procurar a cura em todos os meios, procurar saber sobre isso, todo mundo ver o filme da *Nise e se aprofundar na sua espiritualidade”, conta.

O músico conta que, quando se convive com uma pessoa com esquizofrenia, é preciso ter paciência e viver um dia depois do outro, pois a doença tem fases. Há períodos em que a pessoa está muito bem, mas no dia seguinte ela pode ter uma crise.

“Você tem que saber que amanhã vai ser ruim e, também, que vai ser bom. É o estado que a pessoa está, tem hora que ela consegue se distrair com a realidade, desencanar um pouco da mente dela, sorrir, trocar ideia, lembrar das coisas, reagir de boa. Nesses anos aí, teve dias que o Leo estava tão de boa que a gente levou ele pra fazer show. Ele chega aqui em casa eu olho pra cara dele, tem show no dia, leva ele, mano. Só que são dias bons e dias ruins”, conta Neto.


Poder Público, tratamento e Inclusão

O rapper afirma que o tratamento médico oferecido pelo SUS (Sistema Único de Saúde) foi e é de extrema importância. Neto conta que a qualidade do atendimento também é boa e que, inclusive, em uma das vezes em que o Leo precisou ser internado, foi ele mesmo quem buscou o atendimento.

Contudo, o músico relata que o poder público está diminuindo a oferta de tratamentos voltados para a saúde mental.

“Está sendo sucateada a saúde mental, esse novo Governo tá sucateando. Os caras não querem dar nem remédio mais. Isso é reflexo dessa agenda liberal, desses pseudomilitares que não tem sensibilidade pra essas coisas [...]. Eu não sei se o de cima é reflexo do de baixo, ou se o de baixo é reflexo do de cima. Não sei se é a gente que faz o nosso Governo ou é o Governo que faz a gente”, diz.

Neto afirma que a sociedade como um todo precisa aceitar que os problemas mentais existem para que eles possam ser tratados, pois o primeiro passo para resolver um problema é falar dele:

“Você tem que estimular a pessoa a vim pra relação, a se ligar no mundo, a se interessar pelas coisas, reinserir ela na vida. E isso tem que partir das pessoas [população] pra gente ter uma opinião pública um pouco melhor, um pouco mais compreensível, um pouco mais sensível, pra gente conseguir refletir isso nos nossos representantes – nos prefeitos, no presidente, em programas de inclusão”.


A Esquizofrenia

O Portal Meon buscou, também, as explicações científicas sobre esquizofrenia. A psicóloga Thaís Ribeiro Santos esclareceu algumas questões sobre a doença:

Quais são as características da esquizofrenia?

A esquizofrenia é um dos principais transtornos mentais associados a um desequilíbrio que afeta o indivíduo em sua totalidade, principalmente os processos do pensamento e percepção que incluem alucinações e delírios, pensamento e fala desorganizados, comportamento inadequado, perturbação da afetividade, do sentimento do eu, além de autismo.


Quem convive com pessoas que têm a doença relata que os pacientes, geralmente, desenvolvem o foco por alguma atividade específica. Isso é uma característica da doença?

Sim. Um dos sintomas que caracterizam a esquizofrenia é o autismo que, por sua vez, é caracterizado por introversão, perda de contato com a realidade e oposição ao mundo externo.

É possível identificar como uma característica presente nas pessoas com esquizofrenia, que elas permanecem incessantemente pensando em determinado assunto ou executando uma mesma atividade porque, para elas, se não resolverem tais questões, serão exterminados ou isso significará o fim do mundo, então eles precisam terminá-las, mas só “vencem” pelo cansaço ou quando outro pensamento surge e elas precisam resolver.


A doença pode ter níveis diferentes em cada paciente?

Sim. Cada indivíduo irá experienciar a esquizofrenia de um modo diferente, já que é uma doença de caráter vivencial e, devido a isso, deve ser compreendida de maneira singular. De acordo com o Código Internacional de Doenças (CID-10), existem algumas diferenciações de esquizofrenia, sendo esquizofrenia paranoide, esquizofrenia desorganizada ou hebefrênica, esquizofrenia catatônica e esquizofrenia simples.


Há tratamento para a esquizofrenia (medicamentos, terapia, internação)?

Sim, pode-se recorrer a todas essas alternativas, a depender da fase e gravidade da doença. De todo modo, o tratamento da esquizofrenia demanda de um trabalho envolvendo diversos profissionais de modo integrado. Dessa maneira, procura-se por um tratamento humanizado, considerando o indivíduo como um ser biopsicossocial e, desta forma, com uma equipe multiprofissional, englobando os profissionais da medicina, da psicologia, da terapia ocupacional, da enfermagem, entre outros.

Importante salientar que é preciso compreender o sujeito antes de sua patologia, já que antes de adoecer, ele é humano.

Nos períodos de crise e em caso de agravamento dos sintomas, em que o indivíduo, por exemplo, apresente algum perigo para a sociedade, a internação pode ser necessária para a garantia de segurança, tanto do paciente, quanto das pessoas que fazem parte do convívio social.


A doença tem cura? Pode regredir?

Os sintomas da esquizofrenia melhoram com medicamentos e demais tratamentos, porém, podem existir dificuldades que façam com que os sintomas e episódios de surto psicótico recorram. Portanto, o tratamento com medicamento e a terapia psicossocial devem ser continuados ao longo da vida, mesmo depois do desaparecimento dos sintomas.


Como a família deve cuidar, tratar e se comportar com o paciente que tem a doença?

Como a família lida com o ente com esquizofrenia afeta diretamente em sua qualidade de vida. A forma de falar e tratar pode ajudar ou prejudicar, fazendo com que o indivíduo com esquizofrenia se sinta amparado ou desamparado, e muitas vezes, pode causar mais sofrimento do que o preconceito vindo da sociedade. Por isso é importante que sobressaiam atenção, carinho e compreensão, além de ser interessante que a família também busque por serviços de apoio, psicoterapia, para que os profissionais de saúde mental acolham os familiares.


Como a sociedade deve se tratar a pessoa que tem esquizofrenia?

Não estigmatizar. Devemos nos despir de preconceitos, acolher e respeitar quem tem esquizofrenia. Se tivermos a oportunidade de conversar, de modo respeitoso e sem ser incisivo, é interessante que incentivemos a busca ou a permanência no tratamento. Se o indivíduo estiver em surto psicótico, buscar por profissionais especializados.


É possível um esquizofrênico conviver em sociedade?

Se estiver controlado, sim. Com os métodos de tratamento, com os serviços de apoio comunitário e programas de saúde mental é possível promover a autonomia e autoestima das pessoas com esquizofrenia.

 

 

*Filme “Nise: O Coração da Loucura” (2015): Nos anos 1950, uma psiquiatra contrária aos tratamentos convencionais de esquizofrenia da época é isolada pelos outros médicos. Ela então assume o setor de terapia ocupacional, onde inicia uma nova forma de lidar com os pacientes, pelo amor e a arte.

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