Por Meon Em Opinião

Uma Máquina Desmistificadora

Em um momento histórico como o atual, com o país vivenciando uma distopia de dimensões orwellianas, a realidade parece, por vezes, uma obra de ficção, espaço no qual tudo é permitido em prol da imaginação. Dentro desse universo, não seria um grande problema vislumbrar uma fábula em que a Terra não se apresentasse como redonda, a ditatura civil-militar brasileira (1964-1985) simplesmente não tivesse existido ou que o nazismo fosse visto como um movimento político de esquerda. Em tese, tudo dependeria do talento e, mais do que isso, da honestidade de propósito do artista disposto a lidar com sugestões dessa natureza.


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Quando, porém, tais sugestões, todas evidentemente falsas, invadem a esfera da vida cotidiana na forma de um discurso político articulado, disposto a se impor como hegemônico custe o que custar, tem-se a referida impressão da realidade se ficcionalizando, consubstanciada numa espécie de novilíngua. Ou seja, aquela língua inventada por George Orwell no romance 1984 que tinha como objetivo precípuo reduzir o escopo do pensamento humano, tornando-o porventura mais adaptável às exigências de uma sociedade massificada e de um Estado totalitário.

Para que tal status quo se configure em sua plenitude, não se pode esquecer o papel exercido na atualidade pelas redes sociais, ao criarem “bolhas” permeáveis a qualquer tipo de opinião desqualificada, desde que esta, é claro, se mostre alinhada a uma determinada visão ideológica. Diante desses fatores, responsáveis pelo surgimento de algo que se assemelha a uma “suprarrealidade”, o teatro, arte normalmente identificada pelo seu caráter representativo, isto é, de re-apresentar em cena uma construção que seria obra de imaginação, parece acanhar-se perante um panorama social tão complexo, que o suplantaria simplesmente pelo seu maior grau de abstração. 

Se o real, portanto, aparenta ser mais ficcional do que qualquer ficção possível, não surpreende que o teatro, assim como o cinema e a literatura, possa abdicar da ideia de representação em favor de uma abordagem direta da realidade, não mais intermediada por uma fábula e a noção nela embutida de “mundo reduplicado”. É o que propõem, basicamente, gêneros como o documentário (de tipo cinematográfico), o romance de não-ficção e o chamado teatro documentário. Este, conforme explica o teórico francês Patrice Pavis, seria “aquele teatro que só usa, para seu texto, documentos e fontes autênticas, selecionadas e ‘montadas’ em função da tese sociopolítica do dramaturgo”. 

A definição sugerida por Pavis vem a propósito para se conceituar adequadamente um gênero teatral bastante em voga. A esse respeito, vale destacar que ele foi, de certo modo, o protagonista da última Mostra Internacional de Teatro (MIT-SP), graças ao trabalho do encenador suíço Milo Rau, autor de três espetáculos apresentados no evento, todos inscritos no âmbito do teatro documentário. 

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Fazendo a necessária ressalva de que a tese sociopolítica subjacente ao gênero não se restringe apenas à dramaturgia, dentro dele se insere o último espetáculo produzido pela Cia. do Trailer – Teatro em Movimento, intitulado Experimento: Desterro.Doc. A partir de uma pesquisa focada no antigo Sanatório Vicentina Aranha, localizado onde hoje se encontra o parque de mesmo nome, o grupo joseense levanta a seguinte questão, que poderia ser resumida assim: de que maneira a cidade de São José dos Campos, com seus planos de zoneamento elaborados ao longo da história, apresentou e apresenta uma clara separação entre corpos humanos? Mais especificamente entre corpos que designam “carne barata” e outros que designam “carne cara”, valendo-se das expressões utilizadas em cena.

Para esboçar uma resposta convincente, à pesquisa de campo empreendida pelo grupo, incorporada à cena por intermédio principalmente da projeção de fotos, cartazes, prontuários e plantas relacionados ao período sanatorial de São José, sobrepõe-se um elaborado trabalho dramatúrgico, baseado na obra Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão (1975), do filósofo francês Michel Foucault. 

É ela que confere o necessário suporte teórico à abordagem propugnada pelo espetáculo, cuja crítica, mesmo partindo de uma sugestão concreta e localizada, o Sanatório Vicentina Aranha, se expande para outras instituições afins, como, por exemplo, a Fundação Casa, responsável por cumprir a um só tempo funções pedagógicas e coercitivas. Assim procedendo, Experimento: Desterro.Doc procura atingir aquele que seria o tripé configurador de uma “sociedade disciplinar” na visão de Foucault: o hospital, a escola e o presídio. Os dois últimos de maneira um tanto lateral; o primeiro de maneira fulcral, já que é ele que se apresenta como o núcleo temático do espetáculo. 

Se, em Vigiar e Punir, a Revolução Francesa surge como um marco a delimitar dois modos diferentes de coerção social exercidos pelo Estado, um antigo e outro moderno, em Experimento: Desterro.Doc, tomando como referência primordial o Sanatório Vicentina Aranha, quem comparece como um verdadeiro “divisor de águas” é, sem dúvida, a penicilina, ainda que seu nome não seja pronunciado no espetáculo sequer uma vez. À penicilina é devida uma alteração substancial na história daquela região, que deixou de ser um local de desterro – onde pessoas adoentadas, necessitando de clima frio e seco, eram conscientemente apartadas do “corpo social” – para se tornar um bucólico parque municipal frequentado pela nata da burguesia joseense. 

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Em ambos os casos, todavia, a cisão de corpos se mantém, pois se no passado as grades do Sanatório serviam para separar pessoas doentes de pessoas saudáveis, hoje ela separa, graças à especulação imobiliária atuante no entorno do Vicentina Aranha, pessoas ricas de pessoas pobres. Estas, não custa acrescentar, por mais bem-vindas que sejam, costumam morar longe dessa região de São José, fator que as impede de usufruir as benfeitorias promovidas pelo surgimento do parque.

Todo esse conteúdo semântico, aqui descrito de modo dissertativo, encontra-se em Experimento: Desterro.Doc, conformado esteticamente segundo os parâmetros de uma linguagem teatral específica. Inúmeros são os dispositivos, acionados no decorrer do espetáculo, que, ao se combinarem, vão aos poucos adensando e reforçando a significação pretendida. Um deles seria a da história de Izaura, personagem real que viveu no Sanatório e lá morreu em razão da tuberculose. Coletada do livro O Desafio de Quatro Santos, de Rodolfo Lima Martensen, sua triste trajetória comparece no trabalho do grupo joseense de maneira narrada e, também, dramatizada, com a atriz Caren Ruaro personificando-a. 

Surgindo em momentos pontuais da encenação, embora atravessando-a de ponta a ponta, é com Izaura e sua desdita que o espetáculo se fecha, quando a personagem, após ser despejada de uma ala privada do Sanatório, transfere-se para a ala pública, o setor onde estaria “destinada” a falecer. 

Com exceção, porém, desse expediente de cunho mais dramático, a tônica de Experimento: Desterro.Doc é, essencialmente, a da performance, com os atores se expressando em seus próprios nomes (ou seja, sem personificarem ninguém) e atuando de múltiplas formas, quase sempre no sentido de obter efeitos simbólicos por meio da interação do corpo com o espaço cênico. Um bom exemplo dessa inclinação mais performática revela-se logo no início da obra, quando, à medida que os espectadores vão ocupando o lugar reservado à plateia, o elenco se posta nu e de maneira estática em cena. Assim que o público se acomoda de vez, os atores, encerrados em um cenário que remete a um laboratório hospitalar, começam a se vestir, procurando estabelecer a partir daí uma relação entre animalidade e humanidade que reaparecerá, como uma espécie de leitmotiv, em diversos momentos de Experimento: Desterro.Doc.


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A cenografia concebida para esse espetáculo tem, aliás, uma importância considerável como canal de enunciação. Com sua textura branca a denotar o máximo de assepsia possível, iluminada por lâmpadas tubulares nas laterais e preenchida com alguns poucos objetos de uso hospitalar, nela os atores parecem atuar como se, em vez de humanos, fossem coelhos de laboratório dentro de uma gaiola. Não por acaso, tanto o coelho como a gaiola possuem um papel fundamental em Experimento: Desterro.Doc, de caráter metafórico. Isso porque, no passado, de acordo com testemunhos, ao se internarem no Sanatório Vicentina Aranha, os pacientes ganhavam de “presente” semelhante kit, que deveria permanecer com eles até obterem alta. O motivo é simples: depois de um certo tempo, inoculava-se o sangue do paciente no coelho para se averiguar o grau de contaminação do bacilo de Koch. Caso o coelho sobrevivesse àquela intervenção, era sinal de que o paciente estava curado.

Outro elemento indispensável à encenação proposta por Marcelo Soler, e que também se liga à cenografia, são as projeções, às vezes dirigidas ao fundo da caixa cênica, outras à frente dela, em uma cortina que, uma vez estendida, serve de anteparo. Seja projetando material pré-gravado ou testemunhos captados in loco pelos próprios atores (com a utilização de uma câmara digital), são elas as responsáveis, em última instância, por estabelecerem as devidas conexões entre o Vicentina Aranha de outrora e o de agora, de modo que a tese suscitada pelo espetáculo se apresente (artisticamente) crível.

Para finalizar, informe-se que o elenco de Experimento: Desterro.Doc, constituído de três atores-performers (André Ravasco, Luan Fonseca e a já mencionada atriz Caren Ruaro), conta com a presença de um músico convidado, o pianista Paulinho Azevedo. Em cena o tempo todo, Paulinho, além de interagir com o restante do elenco – o que confere certo clima de cabaré à encenação, tornando-a, assim, mais descontraída – se insere no espetáculo também como um “documento vivo”, na qualidade de filho de um ex-interno do Sanatório. Nos momentos de blackout, é sua voz em off que se ouve, seja para relatar sua ancestralidade direta, que jamais se permitia comer coelho em casa, seja para compartilhar a experiência de ter sido preso duas vezes nos tempos da ditadura civil-militar. Difícil exigir maior “coerência interna” de uma obra que se coloca como um documentário cênico.

Na era da “pós-verdade”, com milhões de pessoas (os famosos “tios e tias do whatsapp”) se empenhando diariamente na disseminação voluntária de conteúdos que são pura desinformação, um espetáculo de feitio documental e tão apropriadamente trabalhado como Experimento: Desterro.Doc mostra-se de uma urgência ímpar. Mais do que revelar a verdade eterna das coisas, conforme pregava Hegel, à arte parece caber agora uma missão ainda maior: combater a mitomania que se tornou a própria marca do mundo contemporâneo. E o espetáculo da Cia. do Trailer é sobretudo isso: uma máquina desmistificadora.


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Fotos: Cenas do espetáculo Experimento: Desterro.Doc -Divulgação 

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